Quintal

julho 3, 2012

Resolvi sair e dar uma olhada no quintal. Ah, quantas lembranças me traz o quintal…! Lembro-me de um guri com, pelo menos, 80 centímetros a menos, esfregando a barriga – ora no concreto empoeirado, ora na terra macia. Aquele pequeno pedaço de terreno era um mundo à parte. De palpável, só a terra e o boneco do SOS Commandos.

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Não tinha importância se as coisas não funcionassem como no comercial da TV. Aquele era outro mundo. Ali, no quintal forrado de folhas e pequeninos pés de mandioca, o mundo era feito por ele. Bastava pegar uma colher de pedreiro, cutucar a terra, jogar água e – voilà – um lago era formado. E o herói era cruelmente submetido àquele rio selvagem cheio de perigos e aventuras, onde jacarés e tubarões conviviam, sem preocupação em saber se a água era doce ou salgada. E um roteiro inteiro era criado naquela mente infinita.

Em certos momentos, ele deixava o boneco de lado e vivia o herói, como se a câmera tivesse dado um close na cena. E ele se arrastava pela terra – um soldado com a perna machucada, perdido em meio a árvores gigantescas de uma floresta imaginária e desconhecida. E a história era escrita pouco a pouco, conforme o herói a vivia. Assim como a vida deveria ser.

O sol assistia a tudo, divertindo-se com a situação. As horas não eram gastas em frente a uma máquina; o brilho dos olhos não vinha da tela. Aquele herói de camiseta manchada, ora boneco, ora humano, criava um mundo onde podia ser feliz. Um mundo desconhecido e mágico, sem relógio no pulso ou tela sensível ao toque (bobagem: o coração humano é infinitamente mais sensível ao toque; pena que não pode ser ligado na tomada quando a bateria acaba).

“Sequoia”. Créditos: don j schulte @ oxherder arts (Flickr).

Assim, após enfrentar um crocodilo imenso no rio traiçoeiro, nosso herói chegava exausto à parte mais densa da floresta, onde subia nas gigantescas sequoias de mandioca para enxergar melhor a planície à frente. O que ele via eram varais de aço, sustentado por pregos no muro. Mas em seu roteiro eram grandes fios de energia, que permitiam ao boneco ir rapidamente de um lado ao outro – se conseguisse escalar a imensa muralha. A alta tensão não era perigo ali. Não tinha choque, apenas liberdade. A vida se encarregaria de deixar o guri chocado, anos mais tarde.

Sacolas de supermercado viravam paraquedas, que não obedeciam necessariamente à força do vento, mas à força da imaginação. A cachorrinha, ressonando no quintal, era um ser imenso. Talvez um dinossauro, ou um dragão como aquele que o guri tinha visto no filme História sem fim. Tão sem fim quanto as aventuras vividas toda tarde, naquele quintal tão dele.

História sem fim.

Certa vez, o boneco teve o pescoço dilacerado, de tanto que o guri ficava girando sua cabeça. Foi um choque. Era preciso uma cirurgia urgente. Na busca desesperada pela salvação de seu protagonista, o guri achou um alfinete, que deveria servir. Com um esforço cuidadoso, alfinetou o pescoço do boneco, entortou levemente o alfinete e encaixou a cabeça na abertura do corpo de plástico. Testou a cirurgia, girando a cabeça várias vezes. Ficou bem encaixadinho, a cirurgia tinha sido um sucesso. O herói não viu nada, não sofreu, apenas acordou dentro do buraco de um bloco de construção abandonado no quintal, perguntando-se o que tinha acontecido.

O guri-doutor não cabia dentro de si de tanta felicidade e orgulho. Deu um abraço apertado no boneco – e era como se estivesse abraçando a si mesmo. E tem coisa melhor do que um abraço? Basta dizer que é o momento em que a gente mais consegue aproximar, fisicamente, dois corações que se amam. Nesse caso, o guri abraçava novamente o seu mundo imaginário, fantástico, onde o protagonista não tinha capa vermelha ou máscara invocada e as histórias ainda não tinham sido escritas.

É incrível como as lembranças são deliciosamente insistentes, mesmo quando os momentos passados são tão curtos. Certas pessoas, brinquedos, animais – heróis ou não – passam por nossa vida por um curto período de tempo, mas de modo tão intenso, que deixam marcas mais profundas do que outras com as quais sempre nos encontramos.

O sentimento do guri pelo herói que salvava suas tardes dura até hoje, mas a convivência não chegou a completar um ano. Em certa ocasião, a professora da primeira série pediu para os alunos levarem seus bonecos para a escola. Ela levaria o castelo do He-Man para todo mundo brincar. Era algo totalmente novo – levar o herói a um ambiente que não fosse o quintal. Ambos estranharam viver alguma aventura diferente, em um mundo que não era deles. Era como visitar outro planeta.

Castelo do He-man.

Ao final da aula, a professora deixou o tempo livre para todo mundo brincar. O castelo era um barato. O herói, deslocado, apenas manuseou as armas e deu uma olhada na ponte levadiça. Preferiu voltar com o garoto para a carteira, onde foi apresentado a outros guris e seus heróis. Mas, em um momento de distração, o guri foi à frente falar com a professora e, quando voltou, o herói não estava mais perto de sua mochila.

O sinal tocou, a aula acabou, a professora e todos os alunos se alvoroçaram para juntar as coisas. O guri procurava desesperado por seu companheiro, mas ele havia simplesmente sumido. As filas de meninos e meninas foram formadas, a professora estava atrasada, todos estavam prontos e começaram a descer as escadas. Atordoado, o guri tentou em vão interromper a professora, que puxava as filas de alunos com seu braço rechonchudo. O guri gritava, mas ninguém ouvia. Ou talvez a voz não saísse.

O herói se foi para sempre e as aventuras foram morar na memória. Outros bonecos vieram, mas nenhum conseguiu substituir o soldado aventureiro. A dor está lá, fazendo companhia aos incríveis momentos de aventura. Aliás, muita coisa convive na memória, hoje já calejada por choques, dores e perdas inclusive piores. Mas ao passar os olhos e as lembranças por esse quintal uma última vez, tenho cada vez mais certeza de uma coisa: nós dois nunca mais seremos os mesmos.

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Reprodução permitida, desde que sejam dados os devidos créditos. Escrever não é tão simples assim.